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Por Assane Macangira (Coordenador de Programas do UNFPA - Zambézia)

“... Quando as cirurgias de fístula obstétrica recomeçaram, eu fiz a cirurgia e agora estou curada. O que me deixa orgulhosa é que agora estou saudável e recuperei a auto-estima que havia perdido. Também recuperei o meu emprego”, conta Calerda Eugénio Francisco, de 26 anos, do distrito de Gurué, na província da Zambézia, que sofreu de Fístula Obstétrica, uma das lesões mais graves e trágicas que podem ocorrer durante o parto.

Após o primeiro caso positivo da COVID-19 em Moçambique em 22 de Março, e a subsequente declaração de estado de emergência, o Ministério da Saúde (MISAU) implementou uma série de regulamentos para conter a propagação da pandemia, incluindo a interrupção de todas as cirurgias eletivas. Para limitar a propagação do contágio e aliviar a pressão sobre o sistema de saúde, naquela época, apenas cirurgias de emergência eram permitidas.

Uma vez consideradas "não essenciais", raparigas e mulheres que estavam em listas de espera para cirurgias de reparação de fístula obstétrica (FO) viram os seus sonhos de corrigir a sua fístula obstétrica, adiados indefinidamente. Isso exacerbou o seu sofrimento, incluindo a discriminação por outros membros da comunidade e familiares, às vezes até dos seus próprios maridos.

Calenda é um exemplo de mulher que sofreu com os impactos da Fístula Obstétrica, além da descriminação que ela sofreu o]por conta da fístula, até ela poder fazer a cirurgia durante a pandemia da COVID-19 em Moçambique.

Logo depois de ter [o seu] último filho, ela percebeu que não conseguia controlar a urina. “... exalava um cheiro muito mau e as pessoas começaram a discriminar-me. Até o meu próprio marido abandonou-me devido à fístula obstétrica.

”“ a minha mãe foi a única que me ajudou a lavar as minhas roupas e ir buscar água para mim. Mas quando as outras mulheres da minha comunidade viram a minha mãe lavando as minhas roupas e pegando água nos poços, também começaram a discriminá-la e [chamaram-lhe] nomes ”, conta Calenda.

Foto: Cirurgiões e profissionais de saúde do Hospital Rural de Mocuba prontos para mais um dia de reparação de fístula obstetrica

A fístula obstétrica é uma lesão passível de prevenção e tratamento, que ocorre durante o parto prolongado ou obstruído sem a devida e oportuna assistência de um profissional de saúde qualificado, e que leva a uma abertura entre a vagina e a bexiga e / ou canal retal. É um sério problema de saúde pública em Moçambique e uma das consequências da desigualdade de género, pobreza, serviços de saúde fracos, casamentos prematuros, gravidez precoce e desnutrição. Estima-se que 2,500 novos casos de fístula ocorram no país, anualmente. Essa condição dolorosa causa perda incontrolável de urina e/ou fezes, o que deixa a mulher sem graça e muitas vezes leva ao isolamento da comunidade.

Ciente do sofrimento e da discriminação enfrentados por mulheres e raparigas, o UNFPA Moçambique, em parceria com os seus parceiros governamentais e da sociedade civil, passou a defender a retomada das cirurgias eletivas de fístula obstétrica.

O ímpeto deste esforço de advocacia ocorreu quando Moçambique durante as celebrações do Dia Internacional para Acabar com a Fístula Obstétrica (23 de maio de 2020), sob o tema: “Acabar com a desigualdade de género! Acabar com as iniquidades na saúde! Fim da Fístula agora”! Entre outras atividades, as comemorações incluíram programas de rádio, TV, debates e um show com 3 renomados músicos transmitido ao vivo pelo Facebook, formações virtuais e palestras facilitadas por profissionais de saúde e um encontro com autoridades sanitárias.

Nunca a fístula recebeu tanta atenção em Moçambique

Esse trabalho de advocacia levou a duas grandes mudanças: o Ministério da Saúde, por meio do próprio Ministro, comprometeu-se a realizar 80% das cirurgias para quem necessitar de correção de fístula nos próximos anos; e quatro dias após o Dia Internacional, o MISAU emitiu uma circular a todas as direcções provinciais de saúde, instruindo-as a, excepcionalmente, retomarem as cirurgias eletivas, apenas nos casos de fístula obstétrica.

Na província da Zambézia, além de retomar as cirurgias de correção da fístula, as autoridades locais aumentaram o seu apoio à sensibilização sobre a fístula, a sua prevenção, tratamento e reintegração social. Se não for tratada, a fístula pode se tornar um problema crónico de saúde, incluindo o aparecimento de úlceras, problemas renais e danos aos nervos nas pernas, bem como dificuldades para levar uma vida normal e manter um emprego remunerado.

“Devemos ter as sobreviventes da fístula obstétrica contando as suas histórias de superação da fístula, para que possam sensibilizar outras pessoas na mesma situação. Elas passarão de sobreviventes de fístula obstétrica a influenciadoras e agentes de mudança”, compartilhou a esposa do governador da Zambézia, Margarida Matos, que tem liderado esforços de advocacia na província, reunindo-se com autoridades governamentais, membros da comunidade e líderes e presidindo a força-tarefa multissetorial sobre o assunto.

Desde que o Governo permitiu o reinício das cirurgias de reparação de fístula, 105 mulheres na província da Zambézia já foram operadas.

“A retomada das reparações da FO é importante para aliviar o sofrimento que afeta as adolescentes e mulheres com acesso limitado aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, principalmente nas áreas rurais. Essas raparigas e mulheres sofrem de discriminação, inclusive dos seus parentes. Após a retomada das cirurgias de reparação da fístula, 11 raparigas e mulheres já receberam cirurgias no distrito de Mocuba”, compartilhou Armando Rafael, cirurgião, e ponto focal para cirurgias de fístulas obstétricas em Mocuba, Zambézia

Rafael acrescentou que, devido à COVID-19, eles reforçaram as medidas de prevenção, incluindo o uso de máscaras, sessões de consciencialização, lavagem obrigatória das mãos na entrada da unidade sanitária e enfermarias de cirurgia, serviços de pré-triagem antes de ir aos consultórios principais e outras diretrizes do Ministério da saúde.

Foto: esposa do governador provincial da Zambézia, Margarida Matos, com profissionais de saúde, em Gurué, apoiando DPS Zambézia, em iniciativas de FO

À medida que os países em todo o mundo continuam a responder e lutando para lidar com a pandemia, os serviços de saúde sexual e reprodutiva correm o risco de ficar de fora. O UNFPA continuará a apoiar o Governo para garantir que os serviços e apoio de saúde sexual e reprodutiva estejam disponíveis e acessíveis para mulheres e raparigas, particularmente as mais vulneráveis.

Em suma, devido ao impacto positivo que as correções de fístula obstétrica estão a ter em raparigas adolescentes e mulheres jovens vulneráveis nas áreas urbanas e rurais da Zambézia, o UNFPA continuará a se envolver com diferentes partes interessadas para expandir essas intervenções na província. Os detentores de obrigações, sobretudo o governo e os  parlamentares serão engajados para aumentar as suas iniciativas de consciencialização sobre a fístula obstétrica, para que muitas pessoas estejam cientes desta doença negligenciada, mas prejudicial; além disso, as sobreviventes de fístula obstétrica terão os seus papéis alterados de vítimas para agentes de mudança, pois vão falar na primeira pessoa sobre esta doença. Parceiros locais e líderes comunitários desempenharão um papel fundamental na mobilização de pacientes com fístula obstétrica e as suas famílias para promover partos institucionais e recorrer a unidades sanitárias. Outras agências da ONU e doadores serão mobilizados para financiar projetos e programas de fístula obstétrica.

* Ao contrário de uma cirurgia de emergência que é realizada para condições médicas urgentes (causa de risco de vida), uma cirurgia eletiva pode ser agendada com antecedência. Pode ser uma cirurgia que opte por ter uma melhor qualidade de vida, mas não para uma condição potencialmente fatal.

Fonte: https://www.hopkinsmedicine.org/health/treatment-tests-and-therapies/types-of-surgery

 

*Com financiamento do Governo do Canadá, o UNFPA apoia o Governo de Moçambique a melhorar o bem-estar de raparigas e mulheres que vivem com fístula, educando as comunidades sobre a condição, aumentando a capacidade nacional para o seu tratamento e encaminhamento para cuidados de rotina, além de promover agência entre raparigas e mulheres curadas para apoiar a sua reintegração na sociedade.